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Pequenas palavras de Sarah

maio 30, 2018

Hoje o post é especial, recebi este texto lindo que vou dividir com vocês da Sarah Vervloet e resolvi dividir com vocês.

O que nos faz: sobre a Literatura e Karine

Para Karine 
A literatura nem sempre fez parte do meu cotidiano. Na infância, ela vinha acompanhada de um presente de Natal, de um filme ou de poeira mesmo. O apego ao objeto livro veio, então, ao longo do tempo, talvez na adolescência, quando eu já tinha certo apreço pelas bibliotecas das escolas por onde passei. E a leitura, essa sim, veio num processo: desde as histórias antigas do Egito até chegar à Coleção Vagalume, alguns degraus me foram superados para, enfim, conquistar em mim mesma o gosto por uma história, pela ficção, pelas letras, pela linguagem literária, pela escrita.

Ter hoje, então, certo amor pelo que considero literatura é uma construção, o que parece óbvio, mas não o é. Foi uma construção, digamos, tardia. Muitas pessoas acreditam que o gosto pela leitura vem de berço. E só. Isso significa que, caso você não tenha sido um bebê que comia, literalmente, livros desde o começo do seu crescimento, para depois balbuciar algumas letras e poder entender o que é aquele objeto no qual você antes babava, dificilmente você será alguém apaixonado pela literatura – porque é só isso que parece valer quando o assunto é literatura, ou seja, ser ou não ser apaixonado pelo poder das letras, eis a questão.

Por que estou dizendo isso? Quando chego à sala de aula, essa noção fica um pouco mais clara. Há aqueles que adoram ler, já carregam consigo o hábito e isso é deslumbrante. Mas há, ainda, aqueles que não leram um livro sequer, no auge dos seus dezessete anos. Aos primeiros, as atividades de leitura se tornam, na maioria das vezes, tranquilas. Aos últimos, porém, é comum que as atividades pareçam penosas e venham acompanhadas de um discurso implícito ou explícito de que “eu não nasci para isso”. Dentre as variações desse sentimento de incompatibilidade com a literatura, percebi o quanto está internalizado nesses alunos e nessas alunas o fato de que o “não nascer para isso” seja o “não nasci com isso”, “nem cresci com isso”, “nem vivi com isso” e, portanto, “não estou apto para gostar disso”. Será?

Prefiro chegar às aulas com questões em mente. Nada é definitivo, o caminho não está pronto, nem mesmo é único. O que eu repito aos meus alunos e às minhas alunas sempre é o que aprendi com Guimarães ou Riobaldo: o caminho é a travessia. Ele se faz caminhando. E foi assim que segui minhas aulas, por exemplo, com a turma de Karine. Mal sabia que aquele primeiro ano do Ensino Médio é quem iria, de fato, me ensinar tanto. Mal sabe Karine, inclusive, o quanto me ensinou daquele ano de 2014 até aqui.

Quando comentei sobre um concurso de literatura em sala, não esperava, na realidade, qualquer interesse dos alunos. Não é porque se tratava de turma apática, desinteressada, descompromissada, indisciplinada etc., como muita gente – de dentro e fora da escola – costuma taxar as turmas e seus alunos. É que, no fundo, professor e professora sempre teimam: eu falei sobre o concurso de literatura porque o meu compromisso com meus alunos é oferecer a eles uma diversidade de ferramentas e de possibilidades, mesmo sabendo que muitos deles não se dão conta disso de modo tão fácil. Mas, assim como a leitura literária, que ainda hoje preenche um patamar de prestígio, a escrita literária também, e ainda mais, faz parte desse imaginário de um exercício para poucos, o que praticamente nos ensina a respeitar, à distância, aqueles bem-aventurados que escrevem. Com isso, fui sucinta: divulguei o concurso de literatura e disse que todos poderiam participar, e eu estaria disposta a ler e produzir junto com quem se interessasse. Karine foi a única.

A partir dali, ela passou a produzir narrativas ficcionais que se adequavam ao tema do concurso e, ao me apresentar suas ideias, demonstrava entusiasmo para finalizar a história e se inscrever em seu primeiro concurso de literatura. Era uma procura incessante a cada intervalo de aula, via e-mail ou rede social. A busca pela palavra mais adequada ao trecho, o repensar da trama, a leitura de alguns colegas e suas opiniões – tudo que pudesse estar em conexão ao seu fazer literário lhe dava empolgação. Aos meus olhos, menos como professora e mais como apreciadora dessa arte que é escrever, Karine estava me oferecendo oportunidades. De ler, de escrever, de estar junto, de descobrir, de conhecer, de (me) compreender no movimento que parecia só dela.

Quando, finalmente, terminamos de escrever o conto, a inscrição para o concurso foi realizada e uma longa espera iniciou-se até a divulgação dos resultados. Durante esse tempo, ideias e histórias iam surgindo de Karine, e ela escrevia, escrevia, escrevia. Eu fui de coautora a apenas leitora. As aulas continuaram, as escritas e as leituras em seu fluxo, e recebemos a notícia de que ela não havia sido selecionada. Estremeci pensando que seria um fim ou o começo de desânimos, mas, para a minha surpresa, nós continuamos. Ela escrevia, eu lia; ela tinha uma ideia, eu opinava; ela descobria um autor ou autora de literatura, eu vibrava. Semente por semente.

Hoje, quatro anos depois, sei que minha presença nesse mundo-Karine é ínfima: da menina cheia de insegurança à mulher que assina os próprios textos e assume uma rede de experiências com a leitura Brasil afora, Karine mostra a que veio. Sabemos, nós duas, que a literatura é, portanto, essa construção, seja ela feita pelo tempo, seja pelo afeto – seja por tantas outras maneiras. O blog e o livro publicado são motivo de orgulho para esta amiga-professora, mas ainda mais são as palavras que saem de Karine, carregando vidas, endereços, emoções, encontros e desejos. O que eu quero, como professora, ainda não tem nome (se me permitam fazer essa paráfrase clariceana), mas tudo isso já alimenta um pouco a alma.

Sarah
28 de maio de 2018.


Link do conto que escrevemos juntas para meu primeiro concurso literário: Uma Viagem no tempo de Lindenberg

Conheçam mais sobre a Sarah e as suas obras: Papo de EscritorA Superfície do Mundo e Contos e Microcontos.

Espero que gostem. Beijos literários e até o próximo post...

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